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A é para Anarquia

     Esses textos, eu traduzí do livro "Days of War, Nights of Love" (Dias de guerra, noites de amor), lançado pelo coletivo Crimethinc. Muito bom livro. Conforme eu for traduzindo mais partes do livro, ponho aqui pra quem quiser ler, comentar, opinar, xingar…

 

 

A

é para Anarquia


Os deuses morrem duas vezes – uma no céu,
uma na terra

 
SEM DEUSES. SEM MESTRES.

UMA INTRODUÇÃO À IDÉIA DE PENSAR POR SI MESMO.

Sem
deuses

Certa vez, folheando um livro
de psicologia infantil, dei de cara com um capítulo sobre rebeldia adolescente.
Sugeria que na primeira fase da rebeldia juvenil de uma criança contra seus
pais, ela pode tentar se distinguir deles acusando-os de não cumprir seus
próprios valores. Por exemplo, se eles a ensinaram que bondade e respeito são
importantes, ela vai acusá-los de não ter compaixão suficiente. Nesse caso a
criança ainda não definiu a si mesma ou seus próprios valores, ela ainda aceita
os valores e idéias que seus pais passaram pra ela, e ela só é capaz de defender
sua identidade dentro desse molde. É só mais tarde, quando ela questiona as
próprias crenças e morais que foram apresentadas a ela como sagradas que ela
pode se tornar um indivíduo independente.

Muitos
de nós assim chamados radicais e revolucionários não dão sinal algum de ir além
daquele primeiro estágio de rebeldia. Criticamos as ações daqueles no “mainstream”
e os efeitos da sociedade deles sobre as pessoas e os animais, atacamos a
ignorância e crueldade do sistema deles, mas só raramente paramos pra
questionar a natureza do que todos aceitamos como "moralidade”. Pode ser
que essa "moralidade", pela qual achamos que podemos julgar as ações
deles, seja em si algo que deveria ser criticado? Quando clamamos que a
exploração dos animais é "moralmente errada", o que isso significa?
Estamos talvez apenas aceitando os valores deles e jogando esses valores contra
eles, em vez de estarmos criando nossas próprias regras morais?

Talvez
agora mesmo você esteja dizendo a si mesmo "o que você quer dizer com
criar nossas próprias regras morais? Uma coisa é moralmente certa ou não –
moralidade não é uma coisa que você pode inventar, não é mera questão de
opinião". Aí mesmo, você está aceitando uma das doutrinas mais básicas da
sociedade que te criou: que certo e errado não são avaliações individuais, mas
leis fundamentais do mundo. Essa idéia, resto de uma cristandade morta, está no
centro da nossa civilização. Se você for questionar a instituição, deveria
questionar isso primeiro!

 

De
onde vem a idéia de "Lei Moral"?

Houve um tempo em que quase
todo mundo acreditava em Deus. Esse Deus imperava sobre o mundo, Ele tinha
poder absoluto sobre tudo nele, e Ele tinha estabelecido leis as quais todos os
seres humanos tinham que obedecer. Se eles não obedecessem, sofreriam as mais
terríveis punições nas mãos Dele. Naturalmente, a maioria das pessoas obedecia
as leis o melhor que podiam, seu medo de sofrimento eterno sendo mais forte que
seu desejo por qualquer coisa proibida. Porque todos viviam de acordo com as
mesmas leis, eles podiam ter combinado o que era "moralidade": era a
série de valores determinada pelas leis de Deus. Assim, bem e mal, certo e
errado, eram decididos pela autoridade de Deus, que todos aceitavam por medo.

Um dia, as pessoas começaram a
acordar e perceber que não tinha essa coisa de Deus afinal de contas. Não havia
nenhuma evidência de sua existência, e algumas pessoas não viam mais nenhum
propósito em ter fé no irracional. Deus meio que desapareceu do mundo; ninguém
mais tinha medo dele ou de suas punições.

Mas uma coisa estranha
aconteceu. Apesar de essas pessoas terem tido coragem de questionar a
existência de Deus, e mesmo negá-la para os que ainda acreditavam nela, eles
não ousavam questionar a moralidade que Suas leis tinham deixado. Talvez isso
só não tenha passado pela cabeça deles; todo mundo foi educado para aderir às
mesmas crenças sobre o que era moral, e tinham sido levados a falar sobre certo
e errado da mesma maneira, então talvez eles tenham suposto que era óbvio o que
era bom e o que era mau, Deus estando lá para impor ou não. Ou talvez as
pessoas se tivessem se tornado tão acostumadas a viver sob essas leis que
tinham medo de ao menos considerar a possibilidade de elas não existirem mais
do que o próprio Deus.

Isso deixou a humanidade numa
posição peculiar: apesar de não existir mais uma autoridade para decretar
certas coisas como absolutamente certo ou errado, eles ainda aceitavam a idéia
de algumas coisas serem certas ou erradas por natureza. Apesar de não terem
mais fé numa divindade, ainda tinham fé num código moral universal que todos
tinham que seguir. Apesar de não acreditarem mais num Deus, eles ainda não eram
corajosos suficiente para parar de obedecer Suas ordens; eles aboliram a idéia
de um mestre divino, mas não a divindade de Seu código de ética. Essa submissão
incondicional às leis de um mestre superior a muito falecido tem sido um longo
pesadelo do qual a raça humana está apenas começando a acordar.

 
Deus
está morto – e com ele, a Lei Moral.

Sem
Deus, não tem mais nenhuma regra objetiva pela qual julgar bom e mau. Essa
descoberta foi muito problemática para os filósofos algumas décadas atrás, mas
na real não teve muito efeito em outros círculos. Muitas pessoas ainda parecem
pensar que uma moralidade universal pode ser fundada em outra coisa que não as
leis de Deus: no que é bom pras pessoas, no que é bom pra sociedade, no que nos
sentimos chamados a fazer. Mas explicações do porquê dessas regras
necessariamente constituírem uma "lei moral universal" são difíceis
de definir. Normalmente, os argumentos em defesa da existência da lei moral são
emocionais em vez de racionais: "Mas VOCÊ não acha que estupro é
errado?" os moralistas perguntam, como se uma opinião compartilhada fosse
prova de verdade universal. "Mas você não acha que as pessoas precisam
acreditar em algo maior que elas mesmas?" eles apelam, como se precisar
acreditar em algo fizesse isso virar verdade. De vez em quando, eles até
recorrem a ameaças: "mas o que aconteceria se todo mundo decidisse que não
tem bem e mau? Não iríamos todos matar uns aos outros?"

O
problema real com a idéia de lei moral universal é que supõe a existência de
algo que não temos como saber nada sobre. Os que acreditam em bem e mal nos
fariam acreditar que há "verdades morais" – ou seja, há coisas que
são moralmente verdade desse mundo, do mesmo jeito que é verdade que o céu é
azul. Eles afirmam que é uma verdade desse mundo que assassinato é moralmente
errado assim como é verdade que a água congela a 32 graus. Só que nós podemos
investigar a temperatura de congelamento da água: podemos medi-la e concluir
juntos que chegamos a algum tipo de "verdade objetiva", até onde algo
do tipo seja possível. Por outro lado, o que observamos se queremos investigar
se é verdade que matar é ruim? Não há uma tabuleta de lei moral no topo de uma
montanha pra consultarmos, não tem nenhum mandamento entalhado no céu sobre
nós; tudo que temos pra seguir são nossos próprios instintos e as palavras de
um bando de padres e outros autonomeados especialistas morais, muitos dos quais
nem concordam entre si. Quanto às palavras dos padres e moralistas, se eles não
podem oferecer nenhuma evidência concreta desse mundo por que deveríamos
acreditar no que dizem? E com relação a nossos instintos – se sentimos que algo
é certo ou errado, isso pode torná-lo certo ou errado pra nós, mas não é prova
de que é universalmente bom ou mal. Portanto, a idéia de que existem leis
morais universais é mera superstição: é a suposição de que coisas existem nesse
mundo que nunca poderemos experienciar realmente ou aprender nada sobre. E seria
melhor não perder nosso tempo se perguntando sobre coisas sobre as quais nunca
poderemos saber nada.

Quando
duas pessoas discordam fundamentalmente sobre o que é certo ou errado, não tem
como resolver o debate. Não há nada nesse mundo a que eles podem se referir pra
ver qual dos dois tá certo – porque não tem realmente nenhuma lei moral
universal, apenas avaliações pessoais. Então a única pergunta importante é de
onde vêm seus valores: você mesmo os cria, de acordo com seus próprios desejos,
ou você os aceita de outra pessoa… outra pessoa que fantasiou as opiniões
dela de verdades "universais"?

Você
não teve sempre uma certa suspeita dessa idéia de verdades morais universais,
de qualquer forma? Esse mundo é cheio de grupos e indivíduos que querem te
converter à religião deles, a seus dogmas, seus calendários políticos, suas
opiniões. Claro que eles dirão que um grupo de valores é verdade pra todos, e
claro que eles vão falar que os valores deles são os corretos. Uma vez que você
for convencido de que só há um critério de certo e errado, eles estão a um
passo de te convencer que o critério deles é o certo. Como a gente tem que se
aproximar com cuidado daqueles que querem nos vender a idéia de “lei moral
universal”, então! A insistência deles de que moralidade é uma questão de lei
universal é na sua base apenas um jeito tortuoso de nos fazer aceitar seus
valores, em vez de inventarmos nossos próprios valores que poderiam entrar em
conflito com os deles.

Portanto,
pra nos proteger das superstições dos moralistas e das trapaças dos evangelistas,
vamos acabar com a idéia de lei moral. Vamos dar um passo adiante de uma nova
era, em que criaremos nossos próprios valores em vez de aceitar leis morais por
medo e obediência. Que este seja nosso novo credo:

 Não existe nenhum código moral universal

que deva ditar o comportamento humano.

Não tem essa de bem e mal,

não tem nenhuma regra universal de certo
e errado.

Nossos valores e morais vêm de nós mesmos

e pertencem a nós mesmos, gostemos disso
ou não;

então devemos reivindicá-los para nós com
orgulho,

como nossa criação, em vez de procurar

alguma justificação externa pra eles.

 

Tudo que glorifica “Deus” e o mundo após a morte escraviza a
humanidade e o mundo real.

 

Mas se não existe bem e mal, se nada tem
valor moral intrínseco, como sabemos o que fazer?

Crie seu próprio bom e mau. Se não existe nenhuma lei
moral sobre nós, isso significa que estamos livres – livres pra fazer o que
quisermos, livres pra sermos o que quisermos, livres pra seguirmos nossos
desejos sem se sentir culpado ou envergonhado por eles. Descubra o que você
quer na sua vida, e corra atrás; crie quaisquer valores que sejam bons pra
você, e viva de acordo com eles. Não vai ser fácil, de qualquer maneira;
desejos puxam em direções diferentes, eles vêm e vão sem aviso, então mantê-los
e escolher entre eles é uma tarefa difícil – é claro que obedecer ordens é mais
fácil, menos complicado. Mas se só vivermos nossas vidas do jeito que fomos
instruídos a fazer, as chances são minúsculas de conseguirmos o que queremos da
vida: cada um de nós é diferente e tem necessidades diferentes, então como um
único grupo de “verdades morais” poderia servir pra cada um de nós? Se tomarmos
responsabilidade por nós mesmos e cada um entalhar sua própria tabuleta de
valores, então teremos uma chance combativa de conseguir um pouco de
felicidade. As antigas leis morais são sobras dos dias em que vivíamos sob uma
submissão medrosa de um Deus não-existente; com a partida dele, podemos nos
livrar de toda covardia, submissão, e superstição que caracterizou nosso
passado.

Alguns
interpretam mal a afirmação de que devemos buscar nossos desejos como sendo
mero hedonismo. Mas não é o desejo passageiro, fraco do típico libertino de que
estamos falando aqui. São os desejos e inclinações mais fortes, profundos e duradouros
do indivíduo: são seus amores e ódios mais fundamentais que deveriam moldar
seus valores. E o fato de que não há nenhum Deus que exija que amemos uns aos
outros ou que ajamos virtuosamente não significa que não devemos fazer essas
coisas por nossa própria vontade, se achamos gratificante – o que a maioria de
nós acha. Mas deixe-nos fazer o que fazemos por nossa própria vontade, e não por obediência!

 

Mas como podemos justificar agir por nossa
ética, se não podemos baseá-la em verdades morais universais?

A
moralidade foi justificada externamente por tanto tempo que hoje dificilmente
sabemos como conceber isso de qualquer outra maneira. Sempre tivemos que
defender que nossos valores vinham de algum lugar externo a nós, porque basear os
valores em nossos próprios desejos era (sem surpresa!) estigmatizado pelos
pregadores da lei moral. Hoje ainda sentimos instintivamente que nossas ações
devem ser justificadas por algo fora de nós mesmos, algo “maior” que nós mesmos
– se não por Deus, então por uma lei moral, lei estadual, opinião pública,
justiça, “amor do homem” etc. Fomos tão condicionados por séculos pedindo
permissão pra sentir coisas e fazer coisas, sendo proibidos de basear qualquer
decisão em nossas necessidades, que ainda queremos pensar que estamos
obedecendo um poder maior mesmo quando agimos por nossos próprios desejos e
crenças; de alguma forma, parece mais justificável agir por submissão a algum
tipo de autoridade do que a serviço de nossas próprias inclinações. Nos
sentimos tão envergonhados de nossas aspirações e desejos que preferiríamos
atribuir nossas ações a algo “maior”. Mas o que poderia ser maior que nossos
próprios desejos, o que poderia proporcionar justificativa melhor pras nossas
ações? Deveríamos estar servindo a algo externo sem consultar nossos desejos,
talvez até indo contra nossos
desejos?

Essa
questão de justificativa é onde muitos dos indivíduos e grupos até então
radicais erraram. Atacam o que vêem como injustiça não com o argumento de não
quererem ver tais coisas acontecerem, mas com o argumento de que é “moralmente
errado”. Fazendo isso, procuram apoio de todos que ainda acreditam na fábula da
lei moral, e acabam se vendo como servos da Verdade. Essas pessoas não deveriam
estar tirando vantagem de ilusões populares pra defender suas causas, mas
deveriam estar desafiando suposições e questionando tradições em tudo o que fazem. Uma melhora com
relação, por exemplo, aos direitos animais que é alcançada em nome da justiça e
da moralidade é um passo adiante as custas de dois passos pra trás: resolve um
problema enquanto reproduz e reafirma outro. Certamente tais melhoras poderiam
ser disputadas e atingidas fundadas no fato de serem desejáveis (ninguém que verdadeiramente considerasse isso realmente
iria querer maltratar e matar sem
necessidade os animais, não é?), em vez de se utilizar de táticas que sobraram
da superstição Cristã. Infelizmente, por causa de séculos de condicionamento, é
tão gostoso se sentir justificado por alguma “força maior”, estar obedecendo a
uma “lei moral”, estar reforçando a “justiça” e lutando contra o “mal”, que é
fácil pras pessoas acabarem encurraladas em seus papéis de defensores da moral
e esquecerem de questionar antes de tudo se a idéia de lei moral ao menos faz
sentido. Tem uma sensação de poder que vem de acreditar que se está servindo a
uma autoridade maior, a mesma que sensação que atrai pessoas ao fascismo. É
sempre tentador relatar uma luta como o bem contra o mal, certo contra errado; mas
essa não é apenas uma simplificação, é uma falsificação: porque essas coisas
não existem.

Podemos
agir com compaixão uns com os outros porque queremos,
não apenas porque a “moral manda”, sabe? Não precisamos de uma justificativa vinda
de cima pra nos preocuparmos com animais e humanos, ou pra agir tentando protegê-los.
Precisamos apenas sentir em nossos corações que é certo, que é certo pra nós,
pra ter toda a razão que precisamos. Portanto podemos justificar agir por nossa
ética, sem baseá-la em leis morais, simplesmente não se envergonhando de nossos
desejos: se orgulhando o suficiente deles pra aceitá-los pelo que são, como as
forças que nos conduzem como indivíduos. E nossos próprios valores podem não
ser certos pra todo mundo, é verdade; mas são tudo o que temos pra seguir em
frente, então deveríamos ousar agir por eles em vez de procurar alguma
justificativa maior impossível.

 

Mas
o que aconteceria se todo mundo decidisse que não tem bem e mal? Não iríamos
todos matar uns aos outros?

Essa pergunta pressupõe que as pessoas se contêm pra
não matar umas as outras só porque foram ensinadas que é isso é ruim. A
humanidade é realmente tão cruel e sedenta por sangue que iríamos todos
estuprar e matar uns aos outros se não fossemos impedidos pela superstição? Me
parece mais que desejamos nos dar bem com os outros pelo menos tanto quanto
desejamos ser destrutivos – você não costuma se divertir mais ajudando do que
machucando os outros?  Hoje em dia,
muitas pessoas dizem acreditar que compaixão e igualdade são moralmente certas,
mas isso não têm tornado o mundo um lugar justo e compassivo. Será que não
agiríamos de acordo com nossas inclinações naturais com mais, e não menos,
decência se não sentíssemos que caridade e justiça fossem obrigação? De que
valeria, de qualquer forma, se cumpríssemos nosso “dever” de sermos bons uns
com os outros, se fosse só pra obedecer a imperativos morais? Não seria muito
mais significativo tratar uns aos outros com consideração porque queremos, e não porque sentimos que devemos?

E se a abolição do mito da lei moral de alguma forma
causasse mais discórdia entre os seres humanos, ainda assim não seria melhor do
que viver como escravos de superstições? Se decidimos quais são nossos valores
e como vamos viver de acordo com eles, ao menos teremos a chance de buscar
nossos desejos e talvez aproveitar a vida, mesmo se tivermos que lutar uns com
os outros. Mas se decidimos viver de acordo com regras feitas pra nós por
outros, sacrificamos a chance de escolher nossos destinos e buscar nossos
sonhos. Não importa o quão tranqüilamente nos relacionamos nas correntes da lei
moral, vale a pena a abdicação de nossa autodeterminação? Eu não teria coragem
de mentir pra um companheiro ser humano e dizer a ele que ele tem que se sujeitar
em alguma ordem ética sendo isso pro seu bem ou não, mesmo que essa mentira
fosse evitar um conflito entre nós. Porque eu me importo com os seres humanos,
eu quero que eles sejam livres pra fazer o que for certo pra eles. Isso não é
mais importante do que mera paz na terra? A liberdade, mesmo uma liberdade
perigosa, não é preferível do que a mais segura escravidão, do que paz comprada
com ignorância, covardia e submissão?

Além disso, olha pra nossa história. Tanto
derramamento de sangue, decepção e opressão já foram cometidos em nome de certo
e errado. As guerras mais sangrentas foram lutadas entre oponentes que achavam
cada um que estavam lutando do lado da verdade moral. A idéia de lei moral não
nos ajuda a nos dar bem, nos vira uns contra os outros, pra disputar de quem é
a lei moral “verdadeira”. Não tem como ter nenhum progresso nas relações
humanas até que a perspectiva de todos sobre ética e valores forem
reconhecidas; então poderemos finalmente começar a resolver nossas diferenças e
aprender a viver juntos, sem lutar pela pergunta absolutamente estúpida de quais
são os valores e desejos “certos”. Pelo seu próprio bem, pelo bem da
humanidade, se livre das noções antiquadas de bem e mal e crie seus próprios
valores!

 

Sem mestres

Se você gostou da escola, vai amar o trabalho. Os abusos cruéis e
absurdos de poder, a autoridade presumida que os professores e diretores
exerciam sobre você, a intimidação e a ridicularização dos colegas de classe
não acabam na formatura. Essas coisas estão todas presentes no mundo adulto, só
que ainda em maior escala. Se você achou que não tinha liberdade antes, espera
até você ter que obedecer a chefes de expediente, gerentes, proprietários,
senhorios, credores, cobradores de taxas e impostos, conselhos municipais,
juntas de recrutamento, cortes legais, e polícia. Quando você sai da escola,
você pode escapar da jurisdição de algumas autoridades, mas entra no controle
de outras ainda mais tirânicas. Você se sente bem sendo controlado por outros
que não entendem ou se preocupam com suas vontades ou necessidades? Você se
beneficia de alguma forma obedecendo às instruções de patrões, às restrições de
senhorios, às leis de magistrados, pessoas que têm poderes sobre você que você
nunca teria dado a elas de boa vontade?

Como é que eles possuem todo esse poder, afinal? A resposta é hierarquia.

Hierarquia é um sistema de valor em que você é válido medindo o
número de pessoas e coisas que você controla, e o quão submissamente você
obedece àqueles acima de você. O controle é exercido de cima pra baixo pela
estrutura de poder: todos são forçados a aceitar e a se ajustar ao sistema por
todos os outros. Você tem medo de desobedecer àqueles acima de você porque eles
podem vir a te atacar com o poder de todos e tudo abaixo deles. Você tem medo
de abdicar seu poder sobre aqueles abaixo de você porque eles podem acabar acima
de você. No nosso sistema hierárquico estamos todos tão ocupados tentando nos
proteger uns dos outros que nunca temos a chance de parar e perguntar se essa é
realmente a melhor maneira que nossa sociedade poderia ser organizada. Se
pudéssemos pensar sobre isso, provavelmente concordaríamos que não é; porque
até onde sabemos, a felicidade vem do controle sobre nossas próprias vidas, e
não sobre a vida dos outros. E enquanto estivermos ocupados competindo por
controle sobre outros, seremos com certeza nós mesmos vítimas de controle.

É o nosso sistema hieráquico que nos ensina desde criança a aceitar
o poder de qualquer figura de autoridade, sem importar se é pro nosso bem ou
não. Aprendemos a nos curvar instintivamente diante de qualquer um que afirme
ser mais importante que nós. É a hierarquia que torna comum a homofobia entre
pessoas pobres nos Estados Unidos – desesperados pra se sentir mais valiosos,
mais significantes que alguém. É a hierarquia trabalhando quando
duzentos punks vão prum bar (o que já é um erro, claro!) ver uma banda, e por
alguma razão estúpida o dono do bar não deixam eles tocarem: tem 206 pessoas no
bar, 205 que querem ver a banda tocar, mas todas elas aceitam a decisão do
proprietário do bar só porque ele é mais velho e o lugar pertence a ele (ou
seja, ele tem mais poder financeiro, e assim mais poder legal). São os valores
hierárquicos que são responsáveis pelo racismo, pelo classicismo, pelo sexismo,
e mil outros prejuízos que estão profundamente arraigados na nossa sociedade. É
a hierarquia que faz as pessoas ricas olharem pras pessoas pobres como se elas
não fossem humanas, e vice-e-versa. Ela joga patrão contra empregado, gerente
contra trabalhador, professor contra aluno, fazendo as pessoas lutarem umas
contra as outras ao invés de trabalharem juntas em auxílio mútuo; separadas
assim, elas não podem se beneficiar com as experiências e idéias e habilidades
umas das outras, mas devem viver com ciúme e medo delas. É a hierarquia em
funcionamento quando seu chefe te insulta e faz avanços sexuais contra você e
você não pode fazer nada, assim como quando os policiais ostentam seu poder
sobre você. Porque o poder torna mesmo as pessoas cruéis e sem coração, e a
submissão torna mesmo as pessoas covardes e estúpidas: e a maior parte das pessoas
num sistema hierárquico toma parte dos dois.
Os valores hierárquicos são responsáveis por nossa destruição do ambiente
natural e pela exploração dos animais: guiados pelo ocidente capitalista nossa
espécie busca controle sobre qualquer coisa em que pode enfiar suas garras, a
qualquer custo pra nós e pros outros. E são os valores hierárquicos que nos
mandam pra guerra, lutando por poder sobre os outros, inventando armas mais e
mais poderosas até que finalmente o mundo vacile à beira da aniquilação nuclear.

Mas o que podemos fazer em relação à
hierarquia? Não é só o jeito em que o mundo funciona? Ou tem outros jeitos que
as pessoas podem interagir, outros valores pelos quais podemos viver?

 

hierarquia…
e anarquia

 

Ressucitando o anarquismo como uma postura pessoal
pra vida

Pare de pensar no anarquismo como só
mais uma "ordem mundial", só mais um sistema social. De onde todos
nós estamos, nesse mundo tão dominado e controlado, é impossível se imaginar
vivendo sem nenhuma autoridade, sem leis e governos. Não é à toa que o
anarquismo normalmente não é levado a sério como um programa político e social
de larga escala: ninguém consegue imaginar como seria realmente, sem contar
como alcançar isso – nem os anarquistas mesmo.

Ao contrário disso, pense em
anarquismo como uma orientação individual pra nós e pros outros, como uma
postura pessoal pra vida. Não é impossível de imaginar. Concebido nesses
termos, o que seria anarquismo? Seria uma decisão de pensar por si mesmo em vez
de seguir cegamente. Seria uma rejeição da hierarquia, uma recusa de aceitar a
autoridade "dada por Deus" de qualquer nação, lei, ou outra força
como sendo mais significante que sua própria autoridade sobre você mesmo. Seria
uma desconfiança instintiva àqueles que afirmam possuir algum tipo de distinção
ou prestígio sobre os outros a seu redor, e uma relutância em adquirir pra você
tal prestígio sobre os outros. Acima de tudo, seria uma recusa em colocar a
responsabilidade de sua vida na mão dos outros: seria a exigência de que cada
um de nós não apenas seja capaz de escolher seu próprio destino, mas que
realmente o faça.

De acordo com essa definição,
existem muito mais anarquistas do que parece, apesar de muitos não se referirem
a si mesmos como tal. A maioria das pessoas, quando pensa sobre isso, quer ter
o direito de viver sua própria vida, de pensar e agir como acha conveniente. A
maioria das pessoas confia em si mesmo pra decidir o que deveria fazer mais do
que confia em qualquer autoridade pra ditar isso a ela. Quase todo mundo é
frustrado quando se encontra sendo empurrado por algum poder impessoal e sem
rosto.

Você não quer estar à mercê de governos,
burocracias, polícia, ou outra força exterior, né? Certamente você não deixa
eles ditarem sua vida toda. Você não faz o que você quer, o que você acredita,
ao menos quando você consegue? Em nosso dia-a-dia, somos todos anarquistas.
Sempre que tomamos decisões por conta própria, sempre que assumimos a
responsabilidade por nossas ações em vez de se submeter a algum poder superior,
estamos colocando o anarquismo em prática.

Então se somos todos anarquistas por
natureza, por que sempre acabamos aceitando a dominação de outros, mesmo
criando forças pra nos governar? Você não preferiria descobrir como coexistir
com seus companheiros seres humanos resolvendo diretamente entre vocês, em vez
de depender de algum conjunto de regras externo? O sistema que eles aceitam é sob o qual você tem que viver: se você quer sua
liberdade, você não pode se dar ao luxo de não se preocupar se os que estão a
sua volta tomam o controle da vida deles ou não.

 

Nós precisamos mesmo de mestres pra nos comandar e
controlar?

No Ocidente, por milhares de anos, nos vendem poder estatal
centralizado e hierarquia em geral. Somos todos ensinados que sem polícia
mataríamos uns aos outros; que sem chefes, nenhum trabalho jamais seria feito;
que sem governos, a civilização em si cairia em pedaços. Isso tudo é verdade?

Certamente é verdade que hoje pouco
trabalho é feito quando o chefe não está vigiando, o caos toma conta quando o
governo cai, e a violência às vezes ocorre quando a polícia não está por perto.
Mas essas são realmente indicações de que não tem outro jeito que poderíamos
organizar a sociedade?

Será que os trabalhadores não fazem
nada a não ser sob observação porque estão acostumados a não fazer nada sem ser
alfinetados – mais que isso, porque ressentem serem inspecionados; instruídos,
tendo que ceder a seus gerentes, e não querem fazer nada por eles que não
tenham mesmo que fazer? Talvez se estivessem trabalhando juntos com uma
finalidade em comum, em vez de estar sendo pagos pra receber ordens,
trabalhando por coisas em que não podem opinar e que não os interessa muito,
seriam mais ativos. Não é dizer que todo mundo está pronto ou apto pra fazer
isso hoje em dia; mas nossa preguiça é condicionada mais do que natural, e num
ambiente diferente, poderíamos descobrir que as pessoas não precisam de chefes
pra fazer as coisas.

E quanto à polícia ser necessária
pra manter a paz: não vamos discutir as maneiras em que o papel de "executor
da lei" traz à tona os aspectos mais brutais dos seres humanos, e como a
brutalidade policial não exatamente contribui pra paz. E quanto aos efeitos nos
civis vivendo num local "protegido" pela polícia? Uma vez que a
polícia não é mais uma manifestação direta dos desejos da comunidade a que
serve (e isso acontece rapidamente, sempre que uma força policial é
estabelecida; eles se tornam um poder externo ao resto da sociedade, uma
autoridade de fora), é uma força agindo de forma coerciva sobre as pessoas daquela
sociedade. Violência não está limitada apenas a danos físicos: qualquer relação
que é estabelecida à força, tal como entre policiais e civis, é uma relação
violenta. Quando agem sobre você violentamente, você aprende a reagir
violentamente. Será então que a ameaça implícita da polícia em cada esquina –
da onipresença próxima de representantes uniformizados e impessoais do poder
estatal – não contribui pra tensão e violência, em vez de afast
á-las? Se isso não parece plausível pra você, e você é de classe
média e/ou branco, pergunte a um homem pobre, negro ou hispânico, como a
presença da polícia faz ele se
sentir.

 

Eu acordei suado do Sonho Americano
 

 

Um exército de escravos escapou do Egito!!

A seguir: As bases morais da civilização ocidental!
 

 

Quando todas as formas padrões de
interação humana giram em torno de poder hierárquico, quando relação humana tão
frequentemente cai no dar e receber ordens (no trabalho, na escola, na família,
nas cortes), como podemos esperar não ter violência nenhuma na sociedade? As
pessoas estão acostumadas a usarem força umas contra as outras em suas vidas
cotidianas, a força do poder autoritário; claro que usar força física não pode
estar tão longe de tal sistema. Talvez se fôssemos mais acostumados a tratar
uns aos outros como iguais, a criar relações baseadas em preocupações iguais às
necessidades uns dos outros, não veríamos tantas pessoas recorrer à violência
física.

 

E quanto ao controle governamental? Sem ele, nossa
sociedade cairia em pedaços, e nossas vidas com ela?

De certo, sem governos as coisas
seriam bem diferentes do que são agora – mas isso é necessariamente uma coisa
ruim? Nossa sociedade moderna é realmente o melhor de todos os mundos
possíveis? Vale a pena conceder a mestres e soberanos tanto controle sobre
nossas vidas, por medo de tentar qualquer coisa diferente?

Além disso, não dá pra dizer que
precisamos de controle governamental pra prevenir derramamento de sangue em
massa, porque foram governos que lideraram os maiores massacres de todos: em
guerras, em holocaustos, na escravização e destruição centralizada de povos e
culturas inteiros. E pode ser que quando os governos caem, muitas pessoas
perdem suas vidas como resultado do caos e das lutas internas. Mas essa luta é
quase sempre entre outros grupos hierarquizados sedentos por poder, outros
aspirantes a governadores e soberanos. Se fôssemos rejeitar a hierarquia
absolutamente, e se recusar a servir a qualquer força além de nós mesmos, não
haveria mais nenhuma guerra ou holocausto em larga escala. Essa seria uma
responsabilidade que cada um de nós teria que assumir igualmente, se recusar
coletivamente a reconhecer qualquer poder que valesse a pena servir, jurar
lealdade a nada além de nós mesmos e nossos companheiros seres humanos. Se
todos nós fizéssemos isso, nunca mais veríamos outra guerra mundial.

Claro que mesmo se um mundo
inteiramente sem hierarquia for possível, não devemos ter ilusão de que algum
de nós vai viver pra ver ele se realizar. Essa nem deve ser nossa preocupação:
porque é besteira organizar sua vida pra que gire em torno de algo que você
nunca poderá experienciar. Deveríamos, de preferência, reconhecer os padrões de
submissão e dominação nas nossas vidas, e, da melhor forma possível, se livrar
deles. Deveríamos pôr o ideal anarquista – sem mestres, sem escravos – em ação
no nosso dia-a-dia como pudermos. Toda vez que um de nós se lembra de não
aceitar de cara valorizar a autoridade dos poderes que sejam, cada vez que um
de nós é capaz de escapar do sistema de dominação por um momento (seja saindo
impune de algo proibido por um professor ou chefe, se dirigindo a um membro de
classe social diferente como um igual etc), é uma vitória pro indivíduo e um
golpe contra a hierarquia.

Você ainda acredita que uma
sociedade livre de hierarquia é impossível? Tem um monte de exemplos pela
história humana: os bosquímanos do deserto do Kalahari ainda vivem sem
autoridades, sem nunca forçar ou comandar uns aos outros a fazer as coisas, mas
trabalhando juntos e garantindo liberdade e autonomia uns aos outros. Claro, a
sociedade deles está sendo destruída pela nossa, mais chegada à guerra – mas
isso não quer dizer que uma sociedade igualitária que fosse extremamente
hostil, e bem-defendida contra, às intromissões do poder externo não poderia
existir! Em "Cidades da Noite Vermelha", William Burroughs escreve
sobre um forte pirata anarquista há algumas centenas de anos que era exatamente
isso.

Se você precisa de um exemplo mais
perto de sua vida, lembre-se da última vez que você se juntou com seus amigos
pra relaxar numa sexta à noite. Alguns de vocês levaram comida, alguns de vocês
levaram entretenimento, alguns providenciaram outras coisas, mas ninguém ficou
marcando quem devia o quê pra quem. Vocês fizeram coisas como um grupo e se
divertiram; as coisas foram feitas mesmo, mas ninguém foi forçado a fazer nada,
e ninguém tomou a posição de líder. Nós temos esses momentos de interação
não-capitalista, não-coerciva, não-hierárquica nas nossas vidas constantemente,
e essas são as horas em que mais aproveitamos a companhia dos outros, onde nos
divertimos mais com as outras pessoas; mas de alguma forma não nos ocorre
exigir que nossa sociedade funcione assim, como nossas amizades e romances. Com
certeza é uma meta alta pedir que isso aconteça – mas vamos ousar alcançar
metas elevadas, vamos não nos contentar com nada menos que o melhor pras nossas
vidas!

 

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