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Vira-latas Sonhadores

Traduzido por um amigo, trecho do romance "off the map" da Crimethink.

    Ser um sonhador nem sempre é um céu estrelado e encantador. Algumas vezes pode ser apenas nublado e opaco, e acabo me cansando dessa vida de vira-lata. Cansada de estar nas calçadas e ter sempre pessoas me encarando, cansada de ser vigiada sempre que entro em uma loja, cansada de ser pega pelo pescoço ou pelo braço e jogada pra fora de cafés quando tento me esquivar até o banheiro pra encher nossas garrafas de água.
    Sei que isso acontece porque sou suja, porque carrego minha vida nas costas e não aparento ter nem um lar nem um gênero. Isso acontece porque pareço ser um fracasso da sociedade e coletivamente morremos de medo do fracasso e dos fracassados e fracassadas. Em nossa cultura do medo aprendemos que as fórmulas para o sucesso e segurança são únicas e singulares. Não existem fórmulas alternativas, ou pelo menos não que sejam de confiança. Então nos espelhamos uns nos outros e policiamos os reflexos em busca de qualquer tipo de aberração.
    Minha vida de vira-lata foi uma escolha. Posso voltar pra esse mundo padronizado quando quiser. Posso usar meu privilégio pra comprar de volta o respeito das mesmas pessoas que agora me trancam do lado de fora. Todas as chaves pra essas portas estão à venda. Então por que vivo nesse exílio auto-imposto?
    Porque você recebe de acordo com aquilo que paga. Pague muito e terá uma vida custosa. Pegue o que é de graça e você será livre. Nas condições da maioria das pessoas essa viagem não teria sido possível. Não, nós não tínhamos dinheiro para os albergues, mas quem teria nos dito pra continuar dançando se não tivéssemos ido ao Verottu Krottu (um squat em Amsterdã)?  Se tivéssemos pegado um ônibus teríamos perdido Ponturson. Não se encontra picnics em cemitérios na fórmula para o sucesso. Nenhum pão barato e chocolate roubado no cardápio.
Mas fora do mapa e além das fronteiras do medo existem outras fórmulas.
Casas abandonadas – permissão = abrigo de graça e aventura.
Chuva + hall de entrada coberto = gratidão.
Em pouco tempo fica claro que o que antes você achava que era raso e chapado, na verdade tem uma face oposta, quinas e um núcleo. Que os espelhos com os quais você cresceu são tão distorcidos quanto aqueles dos parques de diversão e que não há mais sentido em voltar a eles. Só existe desistir ou seguir em frente. Em uma direção cinismo, na outra, sonhos.
    Apesar de ter sido uma opção, às vezes sinto certos ressentimentos quanto às minhas escolhas, como por exemplo quando me impedem de usar o banheiro e tenho que vagar pela cidade atrás de um arbusto. Cinicamente penso: não é à toa que as cidades cheiram a mijo, só os ricos têm permissão pra urinar. Vocifero contra as injustiças, vaio os olhares descarados, abro mão de meus trajes e me prometo desistir de sonhar.
    Mas não consigo. Mesmo vociferando, vaiando e xingando, sou lembrada de que há anjos em todo lugar. Anjos que escolhem devolver as estrelas e o brilho ao céu. Anjos dentro do sistema, não apenas fora dele, como Jan, que nos deu carona ontem e desviou quilômetros de sua rota original apenas pra nos deixar em um bom lugar.
    “Aqui está o meu número”, disse depois de nos desejar boa sorte, “caso vocês não consigam uma carona vocês têm onde ficar essa noite.”
    Mais cedo, quando Hibckina o perguntou o que ele faria se não tivesse que manter seu emprego em computação, ele suspirou e olhou pela janela, além do asfalto, em direção à água.
    “Eu velejaria”, ele disse, “Eu velejaria o tempo todo.”
    “Sonhadores presos atrás de computadores”, Hibckina e eu murmuramos entristecidamente com nós mesmas mais tarde.
    E essa manhã, quando nos sentamos amparadas contra o calor da parede de tijolos de um restaurante, o proprietário saiu e sugeriu que fôssemos pra dentro onde havia mesas. Assim ficaríamos mais confortáveis, sem precisar consumir nada. Agradecidas pedimos café mesmo assim, e enquanto vasculhávamos nossos trocados ele nos disse pra pagar apenas o quanto pudéssemos pagar.
    “…e isso será o bastante”, sorriu.
    É o néctar do mundo dos anjos que alimenta os viajantes na estrada dos sonhos. Assistimos uns aos outros, mesmo quando nossas equações variam. Somos todos ângulos daquilo que uma vez pareceu chapado. Trazemos seu corpo à vida. Enquanto toma forma, encorpa, adquire bordas, expõe uma barriga antes escondida e um coração latente em seu interior, aquilo que antes parecia raso pode então ser reconhecido como o outro mundo que estamos criando. Fazemos dele um lar. Abrimos suas portas quando oferecemos gentileza e passamos por essas portas quando as aceitamos. Ao contar essas histórias estamos criando janelas.

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